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voltarGenerosidade e serenidade em tempos de catástrofe
Todas as políticas públicas e as atividades privadas devem ser subalternas da política sanitária. A salvação de vidas não admite opções de prioridade. Restará, afinal, a duríssima e complexa missão de mitigação de danos
Nenhuma agência estatal de inteligência foi capaz de prever a dimensão da catástrofe que se abate sobre a humanidade e, muito menos, conceber estratégias para enfrentá-la.
Arrisco-me a interpretar esse erro crucial como fruto do desapreço generalizado por temas que extrapolam interesses individuais, corporativos ou nacionais.
É parvoíce pensar que a miséria em longínquos rincões africanos ou a de vizinhos, que sobrevivem em bolsões de pobreza, não nos diga respeito. Muros não serão capazes de deter o legítimo direito de escapar da fome, da guerra ou da perseguição política.
É estultice desconsiderar agressões ao meio-ambiente. As cíclicas mudanças climáticas da Terra não autorizam práticas que a exacerbam e podem inviabilizar a vida, como as fundadas em pífias pretensões de crescimento econômico ou manutenção de empregos que envelheceram.
Não podem ser admitidos planejamentos tributários abusivos, que amealham, em paraísos fiscais, montanhas de dinheiro que poderia ser canalizado para enfrentamento da pobreza e redução das desigualdades.
Nesse contexto inserem-se, também, o desarmamento nuclear, a assistência em catástrofes naturais e a prevenção contra pandemias e colisões com asteroides e cometas.
Os efeitos catastróficos da Covid-19 nos obrigam a refletir sobre essas questões de segurança planetária. Antes, tudo isso seria qualificado como matéria ficcional.
Assim como após as grandes guerras do século XX foram concebidos instrumentos multilaterais de cooperação internacional, agora, por mais forte razão, todos os países e não apenas os vencedores dos conflitos serão instados a encontrar mecanismos de cooperação, assistência e prevenção, sob a égide da segurança planetária. Na pandemia, só existem perdedores.
Como alertou, em 1969, o pensador norte-americano Buckminster Fuller (“Manual de Operação para a Espaçonave Terra”), somos todos passageiros da espaçonave Terra.
A utopia da segurança planetária se assenta na generosidade, que encerra, no momento, gestos de pessoas e do Estado: os que cuidam de moradores de rua; os que fabricam ou distribuem gratuitamente equipamentos de proteção, como máscaras e respiradores mecânicos; os que resignadamente optam pelo isolamento social; o fisco que entende a interdição do tempo, ditada pela pandemia, e estabelece a moratória de tributos, processos e procedimentos; o Estado que provê transferências de renda e fornecimento de cestas básicas para os necessitados, e segurança para os operadores dos serviços de saúde, limpeza e abastecimento alimentar. O que importa é que cada um, no limite de suas possibilidades, ajude generosamente. Esse é o preço da sobrevivência de todos.
A generosidade, entretanto, abomina atitudes sórdidas, como elevação abusiva de preços dos produtos demandados na crise e de juros em operações financeiras, e propostas de aumento de carga tributária (tributação de grandes fortunas, tributação de dividendos, por exemplo), que, além de insubsistentes, revelam um oportunismo vulgar.
A pandemia impõe, mais que nunca, serenidade, que começa pelo reconhecimento da prevalência da política sanitária.
Como bem lembrou o jurista Marco Meneghetti, com base em reflexões sobre a imagem do navio em “A República” de Platão: “na tempestade, ao timoneiro o timão”.
Todas as políticas públicas e as atividades privadas devem ser subalternas da política sanitária. A salvação de vidas não admite opções de prioridade. Restará, afinal, a duríssima e complexa missão de mitigação de danos.
Ao dissertar sobre as resistências à política sanitária de Oswaldo Cruz, no governo Rodrigues Alves (1902-1906), o cientista político Luiz Felipe d’Ávila (“Os Virtuosos”) ressaltou o apoio do então Presidente àquela política: “A função do estadista é diminuir o abismo entre a solução técnica e as variáveis políticas”. Desconsideremos, pois, as palavras desonrosas proferidas por políticos que combinam, pérfida e morbidamente, ignorância e mesquinhos interesses eleitoreiros.